A fiscalização exagerada aos clientes da Boate Kiss agravou a terrível tragédia de Santa Maria, RS

Entre os incontáveis fatores que contribuíram para a tragédia de Santa Maria (27/01/13, com 235 mortos até agora) está o fechamento, pelos seguranças, da única porta da boate Kiss quando as pessoas começaram a fugir do incêndio.

Segundo relatos, os funcionários estavam instruídos para impedir que qualquer pessoa saísse sem comprovar que tivesse pago o que havia consumido.

Certamente a redução do tempo destinado à evacuação elevou o número de mortes e agravou a intoxicação.

A preocupação com a comprovação do pagamento de despesas é uma situação bem brasileira, e não existe nos países com elevado índice de honestidade.

A própria boate Kiss já foi condenada (indenização) por submeter a cárcere privado cliente que estava sem a comanda na saída.

Seu formato é improvável no Primeiro Mundo: por lá, ou fazem shows em locais grandes (onde a venda de bebidas e comidas é descentralizada, dispensando fiscalização na saída coletiva) ou em recintos menores. A Kiss misturou as duas concepções, com todos os defeitos previsíveis.

O setor de jornalismo da TV Globo pesquisou a importância e o uso deste sistema de fiscalização comercial e fez uma reportagem a respeito, exibida na edição de 29/01/2013.

Transcrevo a matéria, quase na íntegra:

As equipes do Jornal Hoje visitaram 15 boates de São Paulo. Assim como a Kiss, em Santa Maria, muitas delas têm apenas uma porta que serve para a entrada e a saída dos clientes. Empresários do setor afirmam que esse formato serve para garantir o controle do pagamento dos clientes. 

A porta de entrada é, quase sempre, a da saída. A maioria das casas noturnas tem uma ou duas entradas, que ficam sempre na frente do estabelecimento. Nas baladas, os clientes entram e pegam uma comanda em um guichê ou balcão. É nesse mesmo lugar que ele paga a conta e deixa a boate. Tudo que é consumido na noite é marcado na comanda. 

Segundo alguns empresários, o pagamento feito desta forma facilita o controle dos clientes pelos donos dos estabelecimentos. Quando há apenas um lugar para a entrada e para saída, é mais fácil evitar o calote. 

Os empresários da noite contam que este modelo de negócio acaba interferindo na arquitetura das boates. Se tiver que pagar com comanda, o melhor é ter uma porta só, para o controle do consumo. Diferente, por exemplo, de teatros, cinemas e grandes casas de espetáculo, onde você paga antes. Nestes estabelecimentos há várias saídas de emergência, também chamadas de saídas de pânico. 

[…] 

Esse controle nas boates é tão rígido que, quando alguém passa mal, os seguranças costumam impedir a saída e orientam que o cliente vá ao banheiro, se recupere e pague a conta. 

A comanda não precisa ser a única forma de cobrança. Uma casa noturna em São Paulo implantou um sistema desde que foi criada há dez anos. A casa tem vários caixas e usa o sistema de fichas. O cliente compra as fichas e vai consumindo. 

O empresário Marco Antonio Tobal, sócio da casa, trabalha na noite com esse método há 40 anos. Para ele, muitos empresários acham que, com a comanda, o consumidor gasta mais porque perde o controle dos gastos.”.

Para acesso ao texto e vídeo, cliqueaqui.

Destaco na matéria a informação – que entendo verdadeira – de que os comerciantes preferem manter este perigoso formato porque acham que o cliente bêbado consome mais e perde a noção da conta que ainda vai pagar.

Mas alguém – o Poder Público – permite (por omissão, negligência, legislação precária ou até corrupção) que os empresários adotem sistemas perigosos, como foi o caso da entrada da boate Kiss, que também funcionava como saída e como porta de emergência.

A recente tragédia foi apenas mais um caso em que o interesse comercial – o dinheiro – é colocado acima dos valores humanos, mas desta vez as consequências ultrapassaram quaisquer expectativas.

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